Os olhos da chocolatier Maria Romero brilham quando ela se lembra da infância em Quilmes, cidade argentina na província de Buenos Aires, e do seu primeiro contato com os alfajores.
“Minha primeira lembrança de comê-los é de quando era pequena”, diz ela.
“Tinha um quiosque dentro da escola e corríamos no intervalo para comprar alfajor. Tenho uma lembrança muito forte de ficar de pé ouvindo as crianças gritando os nomes das diferentes marcas — Jorgito, Capitán del Espacio, Fantoche. Se você estava com fome, precisava de um doce, estava triste, você comprava um. Às vezes, você só precisa de um alfajor para sobreviver.”
Em sua forma mais comum, o alfajor argentino é um doce feito com dois biscoitos macios que esfarelam, recheados com doce de leite e cobertos com chocolate ou polvilhados com açúcar ou coco ralado.
Romero descreve os alfajores como “biscakes” — algo entre um biscoito e um bolo (cake, em inglês) — e ganha a vida com eles.
Depois de trabalhar para a Savoy em Londres, os fabricantes de chocolate de luxo Artisan du Chocolat e Rococo, e o Hilton, em Buenos Aires, ela agora dirige a Sur Chocolates, no Reino Unido, que produz alfajores gourmet.
Romero coloca alfajores no mesmo patamar do vinho Malbec, da carne e da erva-mate no panteão culinário da Argentina — e ela não está sozinha.
Cerca de 1 bilhão de alfajores são vendidos na Argentina todos os anos, de acordo com o conselho de turismo de Buenos Aires, e centenas de variedades estão disponíveis em quiosques, supermercados e padarias de todo o país, desde a Tierra del Fuego, no extremo sul, às planícies áridas de Jujuy, ao norte.
“Você pode encontrá-los em qualquer lugar”, diz Allie Lazar, crítica gastronômica de Buenos Aires e colaboradora do blog Pick Up The Fork.
“Cada quiosque vende uma grande seleção de alfajores. A maioria dos argentinos tem uma queda por doces, e doce de leite é basicamente um tesouro nacional, então os alfajores são há muito tempo a guloseima ou o lanche rápido perfeito. Também são um ótimo acompanhamento para contrastar a erva-mate, que tende a ser bastante amarga.”
Os alfajores são parte integrante da cultura popular argentina, aparecendo em diversas obras — do conto O Aleph, de Jorge Luis Borges, às tirinhas da tão amada Mafalda, do cartunista Quino.
Quando era jovem, o jogador Lionel Messi era recompensado por um dos seus treinadores com alfajores por cada gol que marcava.
Eles são tão importantes para a vida argentina que a Constituição do país foi supostamente escrita em uma alfajorería (loja de alfajores) em meados do século 19.
Embora sejam um produto relativamente simples, os alfajores têm uma história longa e complexa.
Facundo Calabró, criador do blog Catador de alfajores e autor do livro ‘En busca del alfajor perdido’ (Em Busca do Alfajor perdido, em português), explica que eles datam pelo menos do século 8, quando um biscoito árabe feito de açúcar, melado, nozes e canela chegou à Península Ibérica durante a conquista dos mouros.
Foram desenvolvidas na sequência versões da Andaluzia e da Múrcia, que ganharam o nome de alajú ou alfajor — derivado, alguns linguistas acreditam, da palavra árabe al-fakher (“luxuoso”) ou da palavra árabe antiga al-huasu (“preenchido” ou “recheado”) .
Com formato cilíndrico e feito de amêndoas moídas, avelãs, farinha de rosca, açúcar, mel e especiarias como a canela, essas versões ainda são tradicionalmente consumidas em algumas partes da Espanha no Natal e em algumas regiões estão disponíveis o ano todo.
Mas os alfajores ganharam destaque de verdade na América Latina.
“No século 16, durante o [período colonial], o alfajor chegou do sul da Espanha e se espalhou pelas Américas, principalmente por meio dos conventos. Começou a se hibridar, pegando os ingredientes de cada região e perdendo outros”, conta Calabró.
Os alfajores em Porto Rico são tipicamente feitos de mandioca moída, por exemplo; enquanto Chile, Peru e México — entre outros — usam suas próprias versões de doce de leite.
No entanto, embora sejam encontrados por toda a América Latina, eles são símbolo, antes de mais nada, da Argentina, maior produtora e consumidora do produto.
Hoje, os alfajores argentinos estão muito distantes de seus predecessores espanhóis e árabes. As versões caseiras mais comuns — e geralmente encontradas nas padarias — são conhecidas como alfajores de maizena, com recheio de doce de leite e cobertura de açúcar ou coco ralado.
“Mas, como a maioria dos alimentos que chegaram à Argentina, os alfajores passaram por reviravoltas provinciais”, explicam Paula Delgado e Claudio Ortiz, chefs da Estancia Los Potreros, que vão publicar seu primeiro livro de receitas em 2021.
“Nossos chefs recorrem a receitas que aprenderam com suas mães, tias, avós. Aqui na província de Córdoba, os alfajores são tipicamente recheados com uma pasta de marmelo doce. Todos os nossos gaúchos, cozinheiros, faxineiros e funcionários se sentam à tarde para falar sobre a vida e política com alfajores e chá mate. Eles são uma parte importante da cultura argentina.”
O tipo mais famoso de alfajor comprado nas lojas é o marplatense, que é recheado com doce de leite e coberto com chocolate. Seu nome vem da cidade costeira de Mar del Plata, berço da principal marca Havanna, que abriu sua primeira padaria em 1947 e agora tem lojas e cafés em toda a Argentina.
Mas há inúmeras variações além do clássico marplatense.
Se você explorar as prateleiras de um quiosque, vai encontrar versões cobertas com açúcar, merengue ou iogurte; recheadas com geleia, ganache, mousse ou pasta de amendoim; e aromatizadas com café, frutas, nozes ou bebidas como rum ou uísque.
Há variedades veganas, sem glúten, de arroz e até com três camadas. As pessoas estabelecem ligações profundas com marcas específicas, de acordo com o marido de Romero, Emanuel:
“Os argentinos precisam pertencer a um lado ou ao outro. Como no futebol, por exemplo, você torce pelo Boca ou pelo River. Com os alfajores é quase a mesma coisa — você tem uma marca (preferida) e a defende.”
Apesar de sua popularidade na Argentina e em outras partes da América Latina, os alfajores são relativamente pouco conhecidos no resto do mundo, embora isso esteja começando a mudar.
A Havanna abriu uma loja na Flórida, a primeira nos EUA, em 2017.
“Há também lojas Havanna na Espanha e mais de 100 no resto da América Latina”, afirma Mariano Oliva, CEO da Havanna USA.
“Vendemos cerca de meio milhão de alfajores por ano nos Estados Unidos e temos um plano — suspenso por enquanto [por causa da covid-19] — de abrir mais unidades. Os alfajores têm um potencial fenomenal.”
No Reino Unido, os alfajores criativos de Romero — erva-mate, Malbec, chocolate amargo e menta são apenas alguns dos sabores — também se revelaram um sucesso.
“Nosso sonho é levar [alfajores] para todos os lugares”, diz ela.
No entanto, enquanto os alfajores se expandem globalmente, a questão de por que exatamente eles são tão populares na Argentina, permanece sem resposta.
Delgado e Ortiz atribuem à paixão nacional por doces; Oliva sugere um forte apego emocional que se desenvolve na infância; e Romero acredita que se deve a uma “paixão compartilhada”.
Para Calabró, as razões por trás do amor argentino pelos alfajores permanecem um “grande mistério”.
“É óbvio que eles fazem parte de nossa identidade coletiva”, afirma.
“[Mas] nós amamos alfajores porque eles fazem parte da nossa identidade ou porque, por alguma estranha razão, decidimos amá-los? Ainda não há resposta.”